Reflexões sobre Natal e a Sociedade do Automóvel
No sítio eletrônico da STTU e do DETRAN-RN se encontram alguns dados sobre o trânsito de Natal. Consta lá que Natal possui no início de 2009 uma frota de 269 mil carros (aproximadamente) e 712 ônibus no total, dos quais, efetivos, apenas 646 (essa diferença considera os que estão em manutenção, quebrados, etc). Diariamente são 530 mil usuários de ônibus. Com esses dados, podemos fazer duas continhas simples. Primeiro constatamos - Natal é uma cidade pequena e já abarrotada de carros. Vivemos em uma cultura onde cada um, assim que puder, deseja comprar o seu "carrinho", logo, fazendo um cálculo simples, dividindo 530 mil por 3 (para equilibrar a parte dos usuários de ônibus que usam duas vezes por dia e os que usam quatro vezes), são aproximadamente 176.666 usuários “absolutos” (aproximadamente) que, se pudessem, comprariam um carro. Imagine Natal com mais 176 a 200 mil carros? Isso sem contar o crescimento populacional da cidade.
A outra continha é que, para que os 269 mil motoristas passassem a usar o ônibus, seriam precisos apenas cerca de 4000 ônibus (dividindo 269 mil por 45 – capacidade normal de passageiros sentados – e depois novamente dividindo por 3 – períodos do dia - já que em média o usuário usa o ônibus de duas a quatro vezes por dia). Ou seja, 269 mil carros poderiam ser substituídos por 4 mil ônibus.
Agora faça um exercício de imaginação e tire todos os carros das ruas e substitua por esses ônibus, para os quais algumas reformas precisariam ser feitas para ampliar a estrutura de paradas de ônibus, nada comparado ao gasto e esforço técnico da construção de apenas um viaduto – para mais carros. Você conseguiria imaginar congestionamentos, se as linhas fossem bem distribuídas entre todas as avenidas e áreas da cidade (pois atualmente há desproporção entre as avenidas, por exemplo, compare o número de linhas na Salgado Filho e na Prudente de Morais, a primeira avenida tem praticamente três vezes mais linhas)?
Você conseguiria imaginar um ar mais limpo, com o devido controle de revisão desses ônibus (e não adianta argumentar que os carros também podem ter controle de revisão, porque de todo modo, 269 mil é somente 179 vezes mais do que mil e quinhentos e logo, no mínimo 100 vezes mais poluição do que os ônibus, considerando que um ônibus polui mais que um carro, porém, 1 ônibus polui infinitamente menos que 60 carros).
Os números são impressionantes, quando fazemos esses cálculos para uma cidade como Natal. E se fizéssemos os cálculos para São Paulo, que em 2008 alcançou a “gloriosa” marca de 6 MILHÕES de veículos? Que impacto ambiental isso não tem? Que impacto positivo não teria a supressão dessa multidão absurda de veículos?
Temos que lembrar de duas coisas - na nossa sociedade o carro possui duas características, primeiro ele é um símbolo do indivíduo/individualismo. Muitas pessoas se autoafirmam através de seus carros, por isso acontece o fenômeno que eu acredito todos já tenham notado de que muita gente em Natal prefere viver em uma casa simples e ter uma 4X4 na garagem, ao invés de ter uma casa melhor e um carro simples, o que é uma contradição, pois se vive de aparências. Segundo, o carro também está associado à ascensão social. Ter um carro dá status, andar de ônibus não.
A lógica nessa cultura é que “quem é totalmente miserável, só anda a pé (praticamente os indigentes), quem já tem algum meio de subsistência, anda de bicicleta. Subiu um pouco na vida, pega ônibus, apesar de sofrer com o sucateamento, e no topo da cadeia, está o carro. Essa é uma cultura extremamente perversa e totalmente alinhada com a Indústria Automobilística que é motor chave da maioria das grandes economias, como os EUA, França, Alemanha. No Brasil não é diferente.
A histórica cultura do "american way of life" se demonstra em todos os países ocidentalizados, entre outras coisas, através desse fato. Desde JK que o Brasil passou a priorizar essa indústria, sucateando ou destruindo totalmente o transporte ferroviário (de todos os terrestres, o mais eficiente) e o coletivo de maneira geral para privilegiar o carro particular, o caminhão (que estupidamente veio substituir o trem), etc. E sabe por que isso? Porque na época os grandes fabricantes de trem eram os europeus (e ainda são). Os americanos fabricavam carros. Tanto que por muito tempo e ainda hoje, a maior marca de automóvel é americana, a GM, mas também a Wolksvagem teve grande influência nessa época.
Como não bastasse isso, a superlotação das cidades por carros, onde casas (principalmente da população pobre) são derrubadas para abrirem-se mais estradas, com viadutos construídos para dar vazão a mais carros, com BRs sendo duplicadas para mais carros e sempre mais carros e em tudo mais carros, a questão não é só essa, de não existir espaço suficiente no mundo para todos quererem ter um carro. Também há o fato do carro (essa máquina de fazer fumaça) ser o principal responsável pela emissão de gases do efeito estufa na atmosfera (aqui no Brasil só não é mais porque a Indústria da Cana, da Soja e a Pecuarista queimam milhões de hectares de mata nativa por ano para abrir espaço para a monocultura e para o gado).
O impacto ambiental da sociedade/cultura do automóvel é devastador e os efeitos climáticos já são por demais conhecidos de todos, com centenas de estudos analisando e comprovando como a Atmosfera está superaquecendo e quais os impactos de aquecermos um planeta inteiro 3 a 4ºC. Tanto a questão da elevação do nível do mar, que varrerá da face da Terra cidades como o Rio de Janeiro, Recife e demais cidades baixas, como também o aumento de terras improdutivas porque as culturas são relacionadas ao clima e muitas áreas onde hoje é agricultável arroz, feijão, trigo, soja e etc. não será mais com esse aumento de temperatura (porque é 3 ou 4ºC na média planetária, mas localmente, as variações são muito maiores, como a questão da seca na Amazônia que todo ano se alastra), e muitas outras consequências.
Ainda poderia citar questões "menores", como o prejuízo imediato à saúde devido ao ar poluído das grandes cidades (e muitos pontos de Natal onde o tráfego é constante podem ser incluídos nessa situação), danos respiratórios, alérgicos, irritação dos olhos, diminuição de hemoglobinas no sangue, menor taxa de oxigênio no sangue (devido à exposição ao monóxido de carbono, que inutiliza hemoglobinas), mil problemas causados pela exposição constante ao coquetel venenoso que é a fumaça do carro.
Por fim, há o que citei no início de maneira suave, o "individualismo motorizado". Essa é uma análise construída pelo movimento de que compartilho por experiência própria. O carro gera uma barreira entre o motorista e o "resto". No carro, a pessoa está totalmente cercada, toda a lataria, os vidros, muitas vezes películas, ar-condicionado, música alta. Tudo isso entorpecem o motorista, fazendo-o se distanciar psicologicamente da realidade externa. Dentro do carro o motorista não percebe a poluição que gera, o barulho, o espaço que ocupa (espaço de meio ônibus - onde poderia ser transportadas 20 a 25 pessoas, ocupado por uma só pessoa no carro), etc. Todos esses fatores são ignorados, pois a pessoa está naquela "atmosfera artificial" que é o interior do carro. Lógico que se a pessoa não usa película, nem tem ar-condicionado ou música no veículo, esses efeitos diminuem, mas considerem que o "ideal" de carro é o que tem todos esses atributos.
Essas barreiras aumentam a sensação egoísta do indivíduo, ele se sente sozinho naquele espaço, ignorando qualquer responsabilidade que possa ter com o coletivo. Ignora que a qualidade do ar que todos respiram depende dele, que a qualidade de vida da cidade depende dele (dele e de todos). Morre o coletivo, assume o indivíduo e nisso continuamos nessa sociedade doentia e devastadora, venenosa e viciada, a "sociedade do automóvel".
Muitas outras questões estão envolvidas, mas esses são alguns dos principais.
E ninguém deveria usar veículos particulares, só coletivos/públicos?
Para finalizar, alguém perguntaria – E ninguém terá o direito de possuir um veículo particular? Uma propriedade privada para seu transporte, quando quiser se locomover para onde não houver transporte coletivo ou público? Certamente que nunca se propôs isso, pois seria ilógico. A questão está no uso do dia-a-dia e no uso racional de recursos.
O primeiro ponto trata da questão de que na maior parte do tempo em que os motoristas usam o carro, é para fazer percursos rotineiros, de casa para o trabalho, da escola para casa, etc. Principalmente no horário do início do trabalho, do almoço e na hora do fim do turno de trabalho esse percurso é realmente sempre o mesmo (raramente ele muda). Assim, nesses casos, o uso do transporte coletivo é perfeitamente possível e muito mais vantajoso, pois evitaria todos os malefícios anteriormente citados. E outra questão, para muitos trajetos onde o ônibus não é vantajoso, porque demora, porque está cheio, etc. essa questão poderia ser perfeitamente sanada com uma administração correta do Transporte, que deveria ser público (posto ser um serviço essencial, tanto quanto a educação e saúde), ou seja, pago com os impostos e não com uma tarifa. Tendo qualidade e sendo gratuito, quem não preferiria andar de ônibus a andar de carro? Para quem ainda preferir o automóvel, a única explicação é a cultura de consumo do carro, o qual, desde pequenos, somos ensinados a desejar. Sem essa cultura, invertendo-se essa idéia, se torna inexplicável tal opção.
Logicamente que veículos que não tem o simples transporte como objetivo, como ambulâncias, carros de bombeiro, veículos dos meios de comunicação, veículos para levar pequenas cargas, etc. não entram nessa crítica, porque seus objetivos são específicos.
A segundo ponto encontra-se com o primeiro. Trata-se da irracionalidade e desproporção do carro. Este é um veículo “desenhado” para levar cinco passageiros, porém, na maior parte do tempo, leva no máximo dois, e prioritariamente um. Então ele tem o tamanho de um transporte para cinco pessoas, um motor desenvolvido para locomover cinco passageiros, todas as características feitas para estes cinco passageiros e. no entanto, majoritariamente, só leva um.
O problema disso é a super-ocupação de espaço urbano pelo carro, causando congestionamentos das vias, lotação de espaço para garagem, vagas, etc. Espaços que poderiam ser usados para moradias, escolas, praças, teatros, lazer em geral, cultura em geral, educação em geral, passa a ser usado para construção de estradas, ruas, avenidas, garagens, espaço para vagas, edifícios garagem e outros aparatos dedicados ao carro. Por que isso é preocupante? Para tudo precisa haver um espaço, não é? Não, porque há grande desproporção nessa equação. O carro na “sociedade do automóvel” é priorizado em detrimento de muitos outros aspectos da sociedade. A quantidade de recursos gastos para manter as ruas em bom estado ou tentar remediar o péssimo estado das vias é gigante. O montante gasto pelos Governos Estaduais e Federais para duplicar e expandir as estradas estaduais e inter-estaduais é gigante.
Como exemplo, leia-se a notícia publicada pela Agência Brasil, importante Agência de Notícias brasileira.
Governo amplia recursos do PAC destinados a rodovias Daniel Lima Repórter da Agência Brasil |
Brasília - As novas projeções para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) divulgadas hoje (4), que estimam acréscimo de R$ 142 bilhões e elevam para R$ 646 bilhões as expectativas de recursos para as obras até o ano que vem, atendem a mais 5.800 quilômetros na duplicação e construção de rodovias, com um custo de R$ 24,7 bilhões. |
O orçamento do MEC de 2009 é de cerca 40 bilhões, lógico que acrescido dos recursos do Plano de Desenvolvimento da Educação, o PAC da Educação, que é de R$ 60 bilhões, chega aos 100 bilhões, distribuídos nos quatro anos de governo (o recurso do PDE). Comparando-se, podemos perceber que se gasta mais neste país com estradas do que com educação. Que sociedade é esta a que vivemos? Que prioridades têm essa sociedade? Para onde estamos indo? Para um mundo melhor para todos, saudável, humano, ou para um planeta destruído pela ganância e individualismo, que entre outras coisas, dá prioridade ao carro antes de às pessoas?
Façamos essa reflexão.
Bicicletada Natal
Sítios eletrônicos:
STTU - http://www.natal.rn.gov.br/sttu/paginas/onibus.php
DETRAN-RN - http://www.detran.rn.gov.br/ <- Ver "estatísticas - frota de veículos"
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